Leitor

Folheei-te.

Tenho os pés frios. Chove torrencialmente e eu estou sentada à lareira enquanto fumo um último cigarro. Estes dias trazem-me mais necessidades e ultimamente são mais que muitas. Enquanto decido mentalmente se pego no livro ou não, reparo na equidade de valores. Só não me agarro mais a ele porque não quero acabar de o ler. É tão delicioso porque ainda não lhe conheço o final e é isso que me desperta o desejo. A chuva continua a bater na janela e eu nem preciso de uma música melancólica para começar a divagar. Que tédio. Não gostei muito das primeiras páginas mas forçei-me a ler, porque ele veio parar-me às mãos por acaso e na vida os acasos não existem. Nem reparei na capa, cheio de desenhos entalados em palavras, sem nexo titular, não lhe entendi os nomes e só passei à frente. Os prefácios deixam-me enjoada, a sério, enjoada. Uma enxurrada de palavras bonitas enfeitadas com metáforas e elogios escondidos para captar o leitor, pois a mim só me deixa a pensar em que tenho que acender mais um cigarro. Mas foda-se, como tenho gostado do livro. E a cada página a mais é uma página a menos. Vou saboreando cada eloquência frásica, cada detalhe esfarrapado e inconsequentemente mal-entendido. Sabes porque é que gosto tanto de livros? Porque no meio de tanto mundo que existe, eu posso criar o meu. As personagens são minhas, a historia é minha e eu sinto que a cada livro lido conheço o meu final. Mas nunca é o meu final, porque a cada livro acabado segue-se mais um dia. E cada dia a mais é um dia a menos. Foda-se, tenho os pés tão frios e não resisto a calar este barulho incessante da chuva, talvez escolha uma música clássica, porque não? O momento está mesmo a pedir e se me meto em merdas românticas sei que me desfaço em lágrimas e já me chega o céu em prantos. Hmm, que melodia catastrófica. Agora reparo. Dou mais um bafo, os cigarros são poucos e estão a morrer no cinzeiro. Estaria eu só a falar dos livros? Estaria também a falar de ti? E será por isso que não me entrego como deveria? Porque, inconscientemente ou talvez não, saiba que assim que te acabar de ler, vais para a prateleira e nunca mais te pego. O desejo de te folhear agora é enorme porque não te sei o futuro, não sei o fim. E se quando te acabar de ler, descobrir que não eras o meu fim que procuro e que afinal existe mais um livro? Mais um dia? E cada dia a mais, é um dia a menos. 

Desisto. Deito o cigarro pela janela e molho a minha mão. Que frio que está. Desligo a aparelhagem e vou dormir. O livro fica para amanhã, ou para depois. Não. Pego no livro e sem ver as palavras, arranco as últimas dez páginas e jogo para a lareira. Se não me encerram os dias pelo menos que me aqueçam os pés. Por enquanto fico satisfeita só por imaginar três mil fins diferentes. Sei que não me vou desiludir porque afinal, o fim vai ser o que eu escolher, sem perder dias a fio a imaginar o que poderia ter sido e não foi. Porque a cada dia a mais... É um dia a menos e eu quero saborear o que me resta pela frente.

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