Leitor

misunderstood





Nunca me conheci por ser impetuosa, quiçá, decidida.

Raramente me deixo controlar pelas minhas escolhas; escolhem-me elas a mim.
Mas se eu tivesse ficado, teria sido diferente? Eu acho sempre que é melhor interromper o processo a meio: quando se conhece o fim, quando começamos a achar que o desfecho é inevitável, quando se sabe que doerá muito mais -para quê ir em frente? Não há sentido: é muito melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, um lenço esquecido numa gaveta, uma camisola jogada na cadeira, uma fotografia, um beijo – qualquer coisa que depois de muito tempo nós possamos olhar e sorrir, mesmo sem saber o porquê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero, cruel, doloroso e saudosista como um tempo perdido. Prefiro viver a ilusão do quase, quando estou "quase" certa que se desistir naquele momento vou levar comigo uma coisa bonita. Quando eu "quase" tenho certeza que insistir naquilo vai me fazer sofrer, que insistir em algo ou alguém pode não correr da melhor maneira, que pode não ser da maneira que eu queria que fosse, eu acabo sempre por jogar tudo para o ar, sem medo que caia em cima de mim, porque sei que, no fundo, poderia sempre ser pior. Prefiro viver com a incerteza de poder ter dado certo e com o consolo que realmente deu certo enquanto resultou, do que com a certeza de ter acabado em dor. Diria ser covardia, medo, insegurança. Talvez, não nego tais acusações próprias.
Sei perfeitamente que algumas vezes -quase sempre- fiz muito mal para pessoas que me amaram. Não é paranóia muito menos mentira. É verdade. Acabo por ser tão neuroticamente individualista que, quando me aparece um resquício de alguém que possa parecer uma ameaça a essa individualidade, fico imediatamente cheia de espinhos - e corto relacionamentos com a maior frieza, às vezes demasiada até.
Porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras tão certas como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicídio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Continuamente, continuamos. E substituímos expressões fatais como "não resistirei" por algo muito mais realista, como "sei que vai passar". É sempre desta maneira que seguimos em frente, e é inegável o facto de que, além de ser o mais eficiente, é também o mais cómodo, porque não implica decisões, apenas paciência.
 E no fundo eu sei que não sou para todos. Gosto muito do meu mundo e ele de mim, à sua maneira. Cheio de surpresas, palavras soltas e cores misturadas. Às vezes tem um céu azul, outras tempestade. Lá dentro cabem sonhos de todos os tamanhos. Mas não cabe muita gente. Todas as pessoas que estão dentro dele não estão por acaso. São necessárias.
Todavia, preciso acabar com este medo de ser tocada lá no fundo.

Ou é preciso que alguém me toque profundamente para acabar com isso.

Prevaricação mental ;





Olhas para as roupas espalhadas pelo chão, têm ar de estar tão usadas quanto o prato em que comes todos os dias. Não sabes se deves arrumar a casa, visitas nem vê-las e sinceramente, sabes que não terás nenhumas enquanto te mantiveres enclausurada nessa bolha em que teimas conjugar o verbo viver. Viver não é assim, deixa-me que te diga, rapariga. 
Entre um cigarro e outro, acabas por alegrar um pouco as quatro paredes que te rodeiam com um jazz comercial demais, tentando trautear a canção em forma de abstinência pensativa só porque sim, porque fazer o vulgar às vezes é bom e sabe bem. 
Vejo-te cerrar os olhos enquanto te debruças à janela para ver as pessoas passar, tão cheias de si, com ar intocável e impenetrante, como se cada uma delas se achasse a única pessoa do mundo, acima de todas as outras. Acabas por soltar uma gargalhada - ah como é bom sentir que finalmente encontraste um resquício de alegria embriagada, tão espontânea que te assustas e páras por momentos, sem saber se foste tu ou eu, que não me vês mas imaginas. Soubessem elas que afinal és tu maior que todo o mundo na tua pequena altivez, consequentemente mundo que te chamas a ti própria. Deixaste as roupas no chão, cheias de cheiros e toques, ainda não estás preparada para deitar fora tudo o que resta, pensas tu. Não agora, na solidão dos teus encantos e receios, em que te sentes aprisionadamente confortável e sei que, no fundo, gritas em silêncio todos os dias, estando surda de te ouvir queixar. Reclamar. Seja lá o que for. 
O pior já passou, ambos sabemos disso. A melancolia do adeus, a desgraça que ceifou o brilho dos teus olhos cor de avelã que outrora tanto encantaram, o desespero que tomou conta dos teus dias, ansiando só por saber que afinal estava tudo bem, não passara de um sonho. E a cada vez que acordavas, pedias para acordar realmente, porque o cansaço de pedir a Deus não te deixava forças para mais. Tu, que de religiosa nada tens, viste-te forçada a pedir mesmo a quem sabes que nada tem para te oferecer, mas um pouco de motivação e embalo, mais que não seja fictício, é sempre necessário para nos mantermos sóbrios e inoculamente sãos. 
Sei que te ris sobretudo por isso. Porque no final só te resta rir, ir lavar a loiça que já se acumula há semanas porque sabes que vais acabar por não ter sítio onde colocar a comida plastificada que teimas em comer, mesmo sabendo que a cada dia te tornas mais desgraçadamente estragada. Coitadas dessas pessoas. Que se entreolham como se não se conhecessem e no fundo, todas elas sabem que não há merda nenhuma no mundo que não nos aconteça a todos. 
A dor de perder alguém que nos é imprescindível é tão comum que te surpreende que ninguém tenha inventado uma cura que se venda em frasquinhos, na mercearia ao virar da esquina. Era só rezar para que o sr. Julio te fizesse um preço de amigo, e pronto. Estava tudo resolvido. 
Mas não, temos que andar a martelar nas merdas dias a fio, choros inconsoláveis, gritos mudos, pancadaria mental. 
Que se lixe, pensas. Que se lixem todos os que pensam que não se consegue. Que não existe o dia de amanhã. Que apesar de tudo, morremos um pouco a cada pouco que passa. 
Tu sabes, descobriste que os dias afinal acontecem estejas morta ou viva, ou morta-viva, que os instantes que podem não contar nada para ti, que passaste em angústia, foram os melhores da vida de alguém. Que a cada minuto que sonhavas pôr termo ao teu destino, um destino novo era traçado a um novo ser que nascia. Sabes que morreu muito de ti, mas o resto que não sofreu a morte, tornou-se mais forte. Ou pelo menos, indiferente. Apático. Será assim tão grave? Pelo menos conseguiste. Correste mil mundos para chegar ao teu, a ti, que alienamente sofres de engenhos peculiares, as doenças que ainda não têm nome ainda te corroem mas que se foda, dizes tu. Pelo menos estás aqui e aprendeste. Que na vida, seja ela qual e de quem for, seja rico ou pobre; com um grande círculo de amizades ou apenas um gato para fazer companhia, a maior dor que existe é a saudade de ainda poder dizer "adeus, até amanhã". É saber que, chega sempre um dia em que o amanhã não existe. E quando esse amanhã não vem, sabemos sempre que o amanhã de alguém é melhor que o teu. Que se arrasta nos minutos, nas horas. Nos dias. Um atrás do outro, tic-tac. Não perdes tempo porque estás perdida nele, sem ambições nem anseios brutais. Quando deixamos de poder dizer "até amanhã" é quando o que nos espera deixa de estar lá. Acabamos por perceber que o que deveria estar certo, por habituação ou mesmo por gosto e vontade, nos deixa. Ou deixamos nós.
Que há amores que se vão embora, há uma mãe que nos abandona, há um gato que foge de casa. E que tal fugirmos nós também?
Fechas a janela, já chega de ver a hipocrisia desfilar pelas ruas como se fosse dona e senhora do teu bairro, da tua cidade, do teu país, do teu mundo sujo. 
Olhas duas vezes para a roupa que tinhas voltado a colocar no chão e sabes o que tens a fazer. Tiras um saco da gaveta empanada e esmurrada de tantos pontapés e resolves deitar fora os cheiros e os toques intensos sobre os quais elas estão impregnadas. No fundo, nunca é tarde, nunca é impossível até conseguirmos ter a capacidade de ultrapassar tudo. Não há maior força no mundo do que a vontade de viver. 

E amanhã pode ser tarde demais