Leitor

Casos notáveis





Falei-te em segredo e foi um segredo só nosso que ficou guardado em tudo o que pudéssemos ter dito em silêncio. Fiquei-me pelas meias palavras medidas em gestos castos, guardei os tesouros e entreguei-tos em mão, e nas tuas mãos eles ficaram até que te cansasses de os segurar. Rias na minha cara como criança que és, nunca soube se de mim ou para mim e na incógnita fiquei, esperançosa de que um dia me esclarecesses e mo desses de volta, nos teus lábios perfeitamente doces. Se pudesse agarrava-te e arrancava-te os dentes um por um, com um alicate feito de aço, como o coração que conseguiste destruir e de seguida cortava os teus dedos, um por um, representando quantas vezes eu chorei em silêncio só por um gesto teu, que me demonstrasses os tesouros que te pedi para guardar; nunca os vi. Ficaste com eles. 

Isto sou eu a sonhar, melancolicamente arrependida de sequer pensar que seria capaz de tamanha crueldade, eu, que de vil tenho o ar e nada mais que um pouco do coração que me resta.
Eu sei que se devolvesses o sorriso que te dei há tanto tempo atrás, guarda-lo-ia, inconscientemente, de volta no baú das memórias boas, que mantenho ainda hoje no móvel do quarto. Onde guardo todo o ódio que te tenho, a raiva dos dias perdidos e contados, das palavras mal-ditas (?) que me segredaste tantas vezes e eu não quis ouvir. Mas ouvi. Ouvi mil vezes e de mil vezes fiz o esquecimento rei, enquanto me embrenhava no calor do teu corpo sem querer saber o que pensavas de mim.

As mulheres têm o dom de não querer ver aquilo que não aceitam e pior ainda, não compreendem. De se deleitar com o que lhes agrada. E quem gostar, gosta na sua plenitude, ama os defeitos e ignora as qualidades para evitar ilusões travadas no olhar. E esse olhar doce;  se não fosse o teu jeito de menino ingénuo, eu diria que de jogador tens muito e de Homem nada. 
Aguardo o dia em que resolvas devolver os tesouros que ainda seguras em mãos, alheias quiçá, ou guardados em cima da tua secretária onde tantas vezes deixei a mala quando cheguei a casa e que agora já nem se deve lembrar do meu cheiro. Que os devolvas e que lhes acrescentes tudo aquilo que lhes roubaste. Que não foi pouco. Que não foi muito. Foi só algo que não se substitui nem é compensado.
Aguardo também o dia em que consiga alhear-me de todos os segredos que em segredo te contei e que deixe de contar todos os silêncios que passámos juntos enquanto dormias. Aguardo.

Porque do amor ao ódio é um passo. E eu estou pronta a seguir caminho.