Leitor

Lost shoe





Ultimamente tem sido difícil desapegar-me do marasmo que me esconde os sentidos. Demasiado rodeada de pessoas vazias, num tempo só meu. Estou tão na merda que nem eu me quero encontrar. Eu sei que conseguiria deixar estes empecilhos para trás, só preciso de uma força, maior que eu, sem mim a pensar. Tive as minhas equimoses, não me falharam as dores, os entorses. Muito menos os cabelos arrancados naquelas brincadeiras em que tínhamos que apanhar alguém. Apanhei-me foi a mim, aproveitei e joguei no lixo porque pensei que não precisava de mais. Nem mais.

Não sei mais nem porquê, porque não me contaram, porque não quis saber sequer, e agora dei conta que afinal, enquanto visto umas meias para me proteger do frio, talvez precise de alguém que me acolha nas noites geladas. Mas eu não consigo admitir, não sei agarrar-me com firmeza, bloqueio a minha mente e recolho as minhas intenções, talvez eu esteja acabada, talvez só me falte assumir, que ela me leve, só me falta que aquela puta me beije os lábios num beijo casto e me entregue de vez. A quem não sei. Eu gostava de trocar, virar as tuas pupilas ao contrário e arrancá-las de uma só vez, para que vejas com os meus olhos, para que eu coma os teus enquanto me transformo em ti. Era simples, vamos trocar os sapatos, eu faço o teu caminho e tu recusas o meu. Nós precisamos ver a merda de mundo que o outro vê, é sempre mais fácil guiar os outros do que aprender a seguir um rumo próprio. Só que entretanto não podemos deixar que nos digam que estamos fodidos, porque não é verdade, estamos só a ver que afinal, existe um umbigo triste para além do nosso e muitas vezes é preciso mais do que uma palmadinha nas costas para aprendermos a levantar a cabeça outra vez. Depois acordo e vejo que para além do quarto em que vivo, todos me olham de alto a baixo, como se já não fosse eu, como se tivesse perdido o senso de humor, vão todos para o caralho, que a graça eu não perdi. Antes fosse, eu ainda me sei rir da desgraça alheia. Dizem que pareço um bocado louca, descompensada, eu não procuro atenção, eu evito olhar nos olhos para não dizerem que me encontro possuída, doente até, só queria ser como tu, fundir-me com a mobília da sala e pedir só e apenas um lugar de repouso quando as pernas me cansarem.
No fundo, nós nem precisamos de trocar os sapatos, a minha doença cura-se com ouvidos, sem olhares, só um pouco de tempo, ninguém precisa de caminhar para lugar nenhum à busca de uma cura que se encontra na cabeça de qualquer um. Não pediste à vida para tratar essas merdas que nem se tratam? Cala-te. Temos que pegar nas cartas que estão em cima da mesa e sermos nós a dá-las, não esperem ajuda. Eu tenho duas hipóteses. Sento-me na varanda com um cigarro a morrer-me nos lábios enquanto me lamento pelo quão a vida me foi madrasta e no desejo de a matar, enquanto rezo e peço a Deus por um pai que nunca veio, por uma mãe que se lembre que ainda estou aqui. Eu podia aceitar a situação em que me encontro, esperar que as coisas se resolvem por milagre divino dum Deus que nunca viu a merda em que estou, eu nunca fui pessoa de correr atrás, de ficar de malas na mão em frente a uma porta que sei que nunca será aberta. Sempre quis ser o ser mais fantástico, gozar com a cara dessas putas que gozavam com as calças rasgadas que eu usava, em 3ª mão, porque não havia dinheiro para mais e eu nunca fui de manias. Eu só queria rebentar a cara a essas pessoas que me olhavam de lado porque a minha mãe era uma drogada e o meu pai me rejeitou antes de eu nascer, tal era a merda que aí vinha.
Eu contive-me, mordi a língua mil vezes e mil vezes engoli o meu próprio veneno, porque me diziam que menina bonita não dizia asneiras nem se portava mal, era pecado. Pecado é ser algo que não consigo.
É, eu realmente estou doente e estragada, tu estás sem olhos porque tos comi, acho que no fundo o que nós precisamos é mudar de rumo. Escolher um novo caminho. Trocar os sapatos para percorrer mil quilómetros e fugir desta merda. Eu já tenho a sola gasta e perdi os cordões.

Calço o 38 e tu?

Walking Disaster

Ando a agarrar-me à réstia dos meus neurónios só para não virar uma demente ébria. Não sei o que farei quando perder os sentidos novamente, se os perder, que os encontres dentro de ti, não os deixes fugir. Sentidos sentido a tempo inteiro, sentes que me deixas? Sinto muito. Só pedia mais um bocado de demência insana, profundamente tortuosa, sabe-me tão bem ficar louca. Só por mais uns momentos. Se voltares, prometo que te deixo novamente. Deixo-te aqui, dentro de mim, a torceres-me veias e artérias, se morrer que me leves contigo. Pouco me importa. Não me revolto de arrependimento da inocência perdida, alguma vez a tive? Rio-me ingenuinamente, eu nem sei o que te dizer. Não te cruzes comigo, roubaram-me a língua e a eloquência, deixei de saber as palavras de cor, mecanizadas num processo contínuo de respostas feitas previamente. Elevei-me tanto que me deixei cair em tentações e que bem que sabe. Tentadoramente perspicaz, insano, tão doente quanto eu, quem és tu afinal? Que me tens e não sabes, que me olhas e não vês. Que me falas sem dizer nada. Só pedia mais um bocadinho. Uma réstia de toques, de sabores. Deixa-me saborear os teus nervos e entranhas, viver dentro de ti porque só essa morte me falta. 
Ainda não esqueci que te quero, apenas não me lembro mais.