Leitor

blindness

“There are poisons that blind you, and poisons that open your eyes.”





São sete passos da minha cama à porta do quarto. Quarenta e dois até à sala. Mais nove e uma volta de 180º para me pôr a jeito de desfalecer no puff. Tudo de luz apagada e sem a batota de arrastar os dedos pela parede.

Minto às pessoas quando me dizem que tenho uma letra feia e desalinhada. Digo que sempre foi assim e que não tenho jeito nenhum para a escrita nem tampouco para o desenho. Sei desenhar uma casa com um tecto torto e um "sol" que nem Sol se parece. Se tivesse que dizer a verdade diriam que estaria a mentir, porque, na verdade, escrevo às escuras. Sempre escrevi. E dói-me os olhos e os ossos da mão direita quando o faço na claridade.
Acabei por decorar os trajectos que me são inerentes, inalei-os juntamente com o fumo de tabaco que me rodeia todos os dias e sinto-me mais humano a cada passo que dou nesta casa perdida. Sem retorno. Eu sei retornar se for preciso, é só voltar atrás, usar as técnicas que fui aprendendo e deitar-me novamente na cama. Mas eu preciso disto: preciso saber que ainda consigo percorrer o caminho de olhos fechados, preciso de agarrar na caneta já quase gasta e de rabiscar o que me alivia o intelecto. Sim, sempre fiquei um pouco embaraçado a cada vez que me criticaram a caligrafia, mas e o que sabem eles?
Sou um corpo de pele às escuras. Semi-vestido, semi-destapado, com a ventoinha a arrepiar-me a nuca. Sou corpo de faixas paralelas projectadas pela luz do Sol a queimar os estores. Vincadas nas minhas pernas, fazem jus às tantas calças que visto amarrotadas. O que eles não sabem é que sou corpo algum. Que nenhum corvo ronda um corpo digno de o ser. Serei eu? Sabem lá eles... Viciados em luz, corpos claros.
Perdem o que existe de mais enigmático por teimarem em encontrar a claridade a cada passo dado. Gosto de saber que no escuro só me sabem ver as falácias e as lacunas, que nunca me encontram sem fecharem os olhos. Eu fecho os meus e é aí que me encontro. Talvez seja essa a minha diferença, conheço-me melhor no silêncio da noite, quando agarro num pedaço de papel e rabisco o que há de mais vazio em mim. Se eu fingir por um momento que abro os olhos sou igual a tantos outros que critico. Como podem dizer que é na escuridão que reside o mal se é tão bom viver sem luz?
Onde preencho cada poro, descubro cada aresta do meu corpo utópico. Quem lhes dera ter um pouco da sabedoria que a minha caneta noctívaga me transmite.
A essência de ser não reside em saber ser. Eu sei-lo desta forma porque os lençóis que contornam o meu corpo sonolento assim o permitem. Esta cama nua, vestida de mim e este corpo nu, nu de saber como saber ser. Aqui, encontro-me quando não quero e quando quero, não me encontro. Cansam-se de me encontrar quando não quero ser encontrado e quando quero, estão a borrifar-se. Soubessem eles o quão bem me sinto nu, numa cama nua. Na minha cama, nua de tudo. De mim, de ti, deles, delas e de todas as coisas. Soubessem eles o quão nu me sinto aqui... Soubesse eu despir-me deste bloco de notas como me dispo a mim.
Mas eu não sei. E por isso todos os dias acabo por me afogar mais um bocadinho em cada gota de suor nervoso que me escorre pela testa enquanto tento descobrir o porquê de não me teres encontrado ainda. Seria fácil, penso eu. Ou então não. Porque se só me encontram quando eu não quero ser encontrado, o que farei eu a este desejo desenfreado de que me encontres? Se me dispo de mim, porque não me consegues ver? Fechasses tu os olhos por um segundo e eu encontraria a luz de que tantos falam...
Se conheço todas as paredes que me rodeiam sem a batota de deslizar os meus dedos nelas, poderei eu trocar todos os toques renunciados e percorrer as curvas do teu corpo para te conhecer de olhos fechados?
Escrever pensamentos lascivos no contorno dos teus lábios suaves. Despir-me de mim para me vestir com a tua pele sedosa. Encontrar-me em ti.
Diz-me, o que te falta para fechares os olhos de uma vez por todas?


com a co-autoria de André Santos - http://afmsantos.blogspot.pt/

dá corda

~ even a broken clock is right twice a day ~



Eu jamais teria chegado onde cheguei se só andasse em linha reta. Tive que voltar atrás, andar em círculos, perder dias, perder o rumo, perder a paciência e desaparecer em tentativas aparentemente inúteis para encontrar um quase endereço, uma provável ponte: a entrada do encontro. Acertei o caminho não porque segui as setas, mas porque desrespeitei todas as placas de aviso. Se tivesse seguido o suposto, se caminhasse sempre com as mesmas pessoas a meu lado, se agarrasse sempre na mesma mão eu não conheceria nada para além do que já conhecia quando estava na linha de partida. Não tinha cortado a meta a tempo e teria desistido a meio do caminho porque sim, porque é aborrecido correr atrás de algo que já se tem. Eu costumo voltar atrás porque não tenho compromisso com o erro. Porque ele não me deve nada e eu consigo mandá-lo embora se assim o quiser. Nós só aceitamos aquilo que nos é permitido. E temos que, veementemente, ignorar tudo aquilo que nos atrasa a vida. Mas nunca - nunca mesmo - ter medo de dar um passo atrás. Porque voltar atrás é melhor do que perder-se no caminho.

É impossível mudar aquilo que foi feito, seguir em frente é arriscado mas deixar tudo como está, é uma enorme covardia para quem quer alcançar os louros da própria honra. Às vezes é preciso arriscar-se em algo que seja verdadeiramente importante na nossa vida. Ganhar ou não, é do jogo. Sendo assim, se eu tiver que perder algo por que(m) tenha muito apreço, só por acreditar nos meus sonhos e nas minhas convicções, que eu perca tudo, então. Ainda que eu me sinta intimidada pelo medo de mudar tudo na minha vida, quero vestir-me de coragem e armar-me de ousadia para enfrentar todos os obstáculos perfilados à minha frente. Se eu insistir em exigir mais de mim mesma, é para que um dia eu não me lamente por não ter tido coragem de romper os meus limites e me aventurar por onde eu ainda não estive.

E se tivesses a oportunidade de voltar atrás? Consertar o erro, mudar o destino. O que fazias? Repetias tudo? Deixavas as coisas como estão? Não fazias nada?
E se pudesses parar no tempo, pararias em qual momento?
Eu repetia tudo. Mesmo tendo cometido erros, acertos, sofrimentos, apegos. Mesmo que naquele exato momento eu desejasse não voltar a lembrar-me disso. Digo mais, se eu pudesse voltar no tempo, não só faria tudo de novo, como aproveitaria mais cada momento que tive. Independente de ter sido certo ou não. Tentaria não cometer os mesmos erros que cometi, e tentaria não deixar que cometessem erros comigo. Mas já que não podemos voltar no tempo, resolvi deixar o tempo e o destino dizerem-me o que vai acontecer. Prefiro não me importar.

Armadura ;

À medida que crescemos, somos forçados a experienciar aquilo que nos faz crescer; torna-se uma bola de neve irremediavelmente pesada para nós próprios. Uma situação de reação-ação que acaba por ser uma capicua literal. Vai sempre dar tudo ao mesmo: quer erremos ou acertemos, acabamos por crescer. O problema reside exatamente quando descobrimos que não nos é possível crescer mais. Nem mais um bocadinho. É quando parte de nós quer voltar atrás e a outra parte pede incessantemente que não nos percamos mais no passado. É quando temos que mostrar ao mundo o quão crescidos estamos, que tudo correu como planeado ou então que somos um protótipo falhado, um gasto de energia. Uma perda de tempo. É só nisso que nos fixamos quando não nos pedem nada mais que isso: provas. Testes. São-nos apresentadas situações-limite, casos de vida ou de morte, em que o mais acertado seria morrer; mas queremos tanto ter um bocadinho mais de vida. Nem que seja para provar isso a nós mesmos. Nem que seja para calar alguém. Acabamos tão apagados que uma mínima luz acaba por nos encandear. Tira-nos a visão. Acaba com o futuro perfeitamente planeado porque nem sempre conseguimos controlar tudo o que existe à nossa volta. Tornamo-nos uma espécie de robot automatizado, mais que programado para corresponder às expectativas alheias, porque se os outros nos virem felizes, nós estamos felizes (?). Afinal, crescer é isso. É aprender até que ponto podemos tornar-nos impenetráveis. É saber exatamente quando desmoronar. Com quem desmoronar. Não é qualquer pessoa que terá esse privilégio: ver-nos crescidos. 
Todos os dias vejo adultos que ainda não cresceram. Vejo pessoas chorarem com alma e rancor.. Assisto a separações, admiro beijos. Invejo abraços. Reparo em olhares, pressinto toques. Contemplo sorrisos. Acabo por constatar que afinal, é tão mais vantajoso crescer do que ser crescido... E no meio dessa constatação, vou rezando aos céus para que, quando chegar a minha hora, quando for o momento de me assumir como uma pessoa crescida, que tenha um porto seguro. Onde possa deixar de ser quem sou. Porque ninguém sabe viver consigo mesmo por muito tempo. Eventualmente acabamos por enlouquecer de tanta sobriedade, e é tão difícil mantermo-nos sãos neste mundo de loucos. Porque sei que precisarei de um lugar onde possa ser louca. Preciso de um sítio onde me tirem a roupa e me toquem na alma. Que me cubram de esperança e me envolvam em compreensão. Um cantinho onde eu possa voltar a crescer só mais um bocadinho, que me acrescente, que me evolua. Um quartinho em que eu possa pensar que só preciso de ser crescida da porta para fora, que só os outros precisam de ver que sou impenetrável. Que não choro. Que não sofro. Que não sinto. Amor. Dor. Raiva. Angústia. Eu preciso da minha bolha. 

Eu preciso de uma pessoa que seja esse lugar. 

"Most people don't grow up. Most people age. They find parking spaces, honor their credit cards, get married, have children, and call that maturity. What that is, is aging."