Leitor

Holocene






Ajeitas o cabelo com ar manhoso de quem não se importa com os olhares fugazes de quem desdenha. Sei que sabes que estou aqui a decorar-te os traços, permaneço inquietamente quieto, para ver o que vais fazer a seguir. Não me prestas atenção, nunca prestaste. E quem seria eu se desistisse de te despir de pudores e preconceitos e fazer-te conhecer o mundo nú e cru que se nos apresenta. E tens tanto para conhecer...

Reparo na maneira como mordiscas os lábios quando pensas no vazio que te enrola os dias... És tão ingenuamente tentadora que seria mais pecado ainda não te desejar. Cruzas os braços como quem espera pelo dia amanhacer, sem dores incessantes, apenas apatia espelhada em todas as atitudes e movimentos. Pára com isso, deixa-te de merdas. Que eu desistir não sou capaz, mas perder a paciência é certeza mais que certa. Não me faças ir aí, pára de pedi-lo subtilmente, eu sei que não vais gostar. Porque sei que preferes a acalmia dos dias apáticos, a previsão antecipada de atitudes, a terapia do "já sei o que vou fazer hoje" ao invés do tormento do desconhecido, da imprevisibilidade momentânea de atitudes alheias, de quedas aéreas sem saber em que chão pisas. Eu não desisto. De te olhar, apenas. Porque conheço cada traço teu apenas com o fogo da minha imaginação, e, em pensamentos, tu já te mostraste em toda a tua plenitude.

Mas não me faças perder a paciência. Deixa-me olhar incessantemente, enquanto posso. Vestir-te com o meu toque, dormir nos teus lábios. Se eu me perder, que seja em melancolia. Não em perda. Porque se perco o que ainda não é meu, é a queda aérea sem chão que tu me dás. E eu ainda não sei voar...

Hoje vou dormir a pensar em ti. Vou perder a paciência contigo, vou aí. Vou agarrar-te. Fazer-te minha. E o resto... fica apenas para depois.

Só um adeus não chega.

Fechei a janela com medo que entre mais frio esta noite. A casa está silenciosa e sinto-me surda de tanto gritar comigo mesma. A solidão tolda-me os olhos e não consigo evitar uma lágrima que escorre incessantemente por todo o meu rosto. Toca-me nos lábios e não resisto a lambê-la. Recostei-me no sofá e olho para o sítio em que costumavas estar todos os dias, ali, sentada. Sempre sentada. 
Não sei se estou a sentir as saudades multiplicadas por dias perdidos sem ti ou se é porque, nestes dias natalícios, não tenho ouvido a tua voz. Dobro as pernas contra o peito com receio que ele se parta em mil pedaços e me destrua o resto que falta. Em mim, e em ti. Anda fraco e a precisar de um abraço. Estou a sentir a tua pele enrugada e vivida, lisa como a de um bebé mas com tantas histórias marcadas, vincadas. Ouço os teus soluços, acompanham os meus. Sinto a tua falta. Só mais um dia, penso eu, este é um dia qualquer. Nunca fui de demonstrar sentimentos, nunca abraço a minha família e os meus beijos são castos e secos. Dava todos os dias que vivi sem ti em troca de um último toque. De uma única forma de te encontrar novamente. 
De uma maneira qualquer de dizer que te amo. Sempre. Porque como inocente pecadora, deixei-te ir embora sem dizer o que sinto. E tu nunca mais voltaste.  E todas as noites eu peço que voltes. Foi só mais um dia, volto eu a convencer-me. Levanto-me e encontro o teu lenço preferido, sinto o teu cheiro, ou penso, apenas. Enxugo as lágrimas e esqueço que afinal, de tantos dias que passaram, ainda ontem te ouvia a ralhar comigo por deixar a sala cheia de migalhas. Sinto a tua falta. É só mais um natal. Um entre tantos que não passei contigo. Entre os que irei passar sem ti. Arrasto-me até à cama, enrolo-me nas mantas e sinto uma pequena brisa no rosto, um toque suave, como a pele de um bebé. Amo-te, sussurro em surdina, na esperança de que me possas ouvir só mais uma vez. 

Até amanhã. Feliz Natal avó, olha por mim aí de cima e não hesites em me mostrar o caminho quando teimar em me perder.

Delírios




Dedilhas os meus anseios enquanto fechas os olhos e tentas menosprezar aquilo que sentes. Sei que te afogo os prantos em águas quentes, de maneira a que não sintas o gelo que é ser tu. Descobri que foges de todas as tuas teorias manhosas de racionar tudo aquilo que é emocionante e que te privas de provar o quão bom é a vida. Tudo isso porque te escondes atrás de palavras feitas e de orgulhos hediondos. Porquê? Se no tanto que há para viver, tu escolhes não morrer de maneira deleitosa. Sei que me tocas porque me desejas mas não me desejas a teu lado para não te ver nessa mágoa fugaz. Eu não tenho medo das tuas dores. Desfaço-me nas curvas apertadas dos teus pensamentos e agradeces-me por ainda te sentires vivo. Não sei que pensar porque deixei os meus pensamentos a prazo, numa conta só tua, perdi-lhes o direito. Chega-te para cá, encosta a tua cabeça no meu peito e chora tudo aquilo que tens a chorar. Eu também tenho medo. Mas usa-me só mais um bocadinho, para te sentires vivo. Para eu me sentir útil. 
Para nos vivermos um ao outro. 

Hetero-avaliação

 'Ainda agora te conheci, mais parece que me despeço, despi-me de tamanha timidez nem sequer liguei ao resto, teu traço pintado parece uma simples tela, não sei se foi Picasso ou se és feita de canela, morena que me aquece a alma fria, só de te olhar sei que sabes fazer magia. Agarras-me e roubas-me a inspiração, não sou de desistir, não faças confusão. Dividimos o céu, o ar e a cama a meias, tu que me tornas teu sem ligar a merdas alheias. Que ao relento tudo é natural bem mais perfeito, beijo os teus lábios carnudos e sei que gostas desse jeito, sinto a tua pele arrepiada faz faísca no corpo, não sei se é o mais certo mas sei que de certeza não é torto, tou pronto para futuro. Uma vida a dois, três ou quatro quem sabe, quero filhos contigo. Uma vida feliz. 
Por favor, dá-me.'

: ft, o mais pequeno.

Discórdia




Puxo-te mais para dentro de mim, mesmo estando tu a dormir que nem um anjo sem passado, a meu lado. Deixo os meus dedos tocarem todos os milímetros incandescentes do teu corpo e sinto o tremor subir-me pelas entranhas. Hmm.
Peco tanto em pensamentos que chamar-me-iam de puta, se mos lessem.
Ligo o candeeiro preto que comprei na feira quando fomos passar o fim-de-semana ao norte, preciso ver as horas. 

Já passam das 5 da madrugada, está um vento devastador na rua e eu não consigo desviar o meu olhar de ti. Tão quente. Espinhas de sol entranhadas na minha mente. Ardes-me e nem te apercebes.
Não te dei parte fraca até hoje e, contendo uma ou outra lágrima teimosa e invulgar que me nada nos olhos, levanto-me e vou à janela ver o tempo passar. Os cães estão a ladrar e sinto a brisa noturna penetrar-me de tal maneira nos pulmões que me sinto cheia. Há tanto tempo que não me sentia cheia.
Reparo na tristeza de um homem que por ali vagueia, na incerteza do seu trajeto e propósito. Vi-me ali. Tocas-me. Vim-me ali. Passeias as tuas mãos pelos meus seios redondos e prendes-me em ti, cheio de fome e tesão. Se não te chego ao coração pelo menos que te chegue o meu corpo. Deixo-me levar até à cama mas deixei o pensamento naquele homem sem propósito, que chutara uma lata em frente à minha janela, enquanto a agonia lhe colhia as expressões. 

Chama-me, egoísta e narcisista até, mas chama-me. E continua-me a chamar.
Quem me garante que daqui a dez anos ainda me elogias?

Diagnosticado.

Levantei-me à pouco, calcei os chinelos desbotados e fiquei sentada na sala a olhar para as paredes vazias. A casa está sem cor e sem calor, de lar não tem nada e doce muito menos. Pego na caneca cheia de corações que me ofereceste no natal passado, e apetece-me multiplicá-la para que te sinta neste natal. Novamente. Tento abstrair-me um bocado da melancolia avassaladora e fria que me arrebata ultimamente. Só reparo que estou sozinha porque estou sozinha. Passo os dias rodeada de pessoas vazias e sei que o que me preenchia eras tu. O ser humano é exímio em conseguir distrações nas situações adversas mas eu já cansei o coração e mais importante ainda, a minha cabeça. Esgotaram-se as opções e por isso resta-me apenas contemplar o vácuo. O café está quente e por segundos fecho os olhos. Como é possível uma pessoa aguentar tamanhas perdas? Não que se morra de amor e muito menos pela falta dele, mas o que fica quando já não fica mais nada? Nada. É isso que faz toda a diferença. Já nada me aquece, já nada me move. Acordo apática dia após dia, sem sentir emoções relativamente a nada. Não ligo a tv porque não aguento ouvir pessoas a falarem, não ouço música com medo que alguma me recorde das tuas gargalhadas. Não tenho fotografias nas paredes porque não quero ir buscar o nosso álbum. Acendo cigarro atrás de cigarro. Um fantasma teria mais vida nesta casa do que eu, que consigo estar mais vazia do que ela. Não me apetece sequer chorar. Passou a fase da revolta desesperada, do sentimento de injustiça seguido da culpa. A tentativa falhada de reverter as coisas. O ir atrás. O dar para trás. O chorar compulsivamente e as promessas de que não verteria mais nenhuma lágrima. Isso tudo passou porque não há mais nada para se passar. Porque as portas fecharam-se e eu não as quero abrir. Vou à janela, espreito de fininho. Ainda te consigo ver passar por aqui, parece-me que olhas duas vezes para a porta e reparas que não tenho regado as plantas, sinto-me culpada. Dou um último bafo no cigarro, jogo a ponta pela janela e escorrego pela parede abaixo. Não sei pelo que espero. Não sei o que te quero. 
Vem-me buscar. 

Segunda estrela à direita, sempre em frente até ao próximo amanhecer.