Leitor

trouble

Do you know
For you I'd bleed myself dry?


Desengane-se quem julga que o mundo é tão utópico quanto a certeza daquilo que dizemos. Que pode ser mentira. Que pode não ser totalmente verdade. Que pode ter só uma pontinha de certeza e todo o resto de desejo e esperança de que seja mesmo assim. Na realidade, podemos ter duas coisas ao mesmo tempo e ao mesmo tempo, tê-las em separado. Se fosse simples, perderia toda a piada, certo?
Ao longo da minha vida, várias foram as vezes em que me confrontei com situações dessas: o desalinho pronunciado de sensações paralelas, uma sombra ao sol. Um arco-íris, que é fruto da água e da luz. Seria ridículo focarmo-nos apenas naquilo que julgamos controlar, porque no fundo, somos nós controlados por algo que nem sabemos o que é. Que arrastamos as escolhas que achamos que fazemos em prol daquilo que achamos que devemos. É mais ou menos o que acontece quando temos a certeza de que não faremos determinada coisa e damos por nós a fazê-la com toda a vontade e convicção do mundo. Ou então é quando achamos que para nos sentirmos apaixonados, temos que amar. Sabemos que existe paixão sem amor, mas buscamos sempre uma conjugação dos dois, amor e paixão de mãos dadas, num mundo de fantasia. Não sei quem ditou que deveria ser assim, nem desde quando é que isso um protocolo a seguir, a regra e a imposição de que só sentimos aquilo que nos obrigamos a sentir e que se nos apaixonarmos por alguém, esse alguém tem que se tornar o amor da nossa vida.
No entanto, quantas e quantas são as pessoas que se apaixonam e não aprendem a amar. E quantas são as pessoas que amam porque nunca souberam o que é sentir-se apaixonado. Ou então, quantas são as pessoas que amam porque estão numa relação mas amariam outra se pudessem admitir a paixão que sentem. Porque acabamos por nos fechar numa casa sem porta, em que nos movemos todos os dias mas paramos sempre no mesmo sítio. À espera que esteja tudo no mesmo lugar. E se estiver, é porque é certo, é porque é correcto. É porque era assim que deveria ser.
Mas... é tão bom quando resolvemos virar o nosso mundo de pernas para o ar, sentir frio na barriga e garganta seca. Arrepiarmo-nos quando sentimos o perfume da pessoa por quem estamos apaixonados. Não há nada como desarrumar o nosso mundo para que alguém nos ajude a orientarmo-nos na confusão, sem esperarmos mais nada em troca. Porque amor não se cobra. Nem tempo. Nem atenção. Muito menos presença. Se as pessoas gostarem mesmo de nós, acabam por nos dar tudo.


stayclose;don'tgo

Sabes quando acordas com a sensação de que vais viver mais do mesmo? Que já acordaste no dia de hoje, que já estiveste nesta situação. É estranho e ao mesmo tempo é a melhor coisa do mundo. É um regresso à casa da qual nunca devias ter saído.
É, talvez, a segunda oportunidade que sempre pediste para poder refazer tudo. É quando olhas com mais atenção e reparas que, afinal, a porta que julgavas que estava fechada há tanto tempo, deixa passar uma luz ténue. Porque se na vida quando se fecha uma porta, abre-se uma janela, o que é que nos impede de irmos lá e abrirmos nós próprios a porta? Sabes que foi descuido teu, que não era tua intenção fechá-la mas também não a querias entreaberta, na incerteza de um regresso que poderia nunca acontecer. E não era justo para ninguém que a porta ficasse inutilizada. Mas, mais uma vez, é quando acordas com a sensação de que sabes o caminho de cor e salteado que tentas fazer tudo com um cuidado redobrado, queres abrir a porta com cuidado e fechá-la devagarinho para que ninguém dê pela tua passagem. Com a tua passagem secreta. Porque de lá já não sais e não permites que mais ninguém entre. Decides que é de vez, que é definitivo e que não há volta a dar porque não queres voltar para trás. É fácil. É só esperar que a porta não esteja trancada. É só bater três vezes devagarinho, com o nó dos dedos, e encostar o ouvido para ver se ouves uma respiração em surdina do lado de lá. É só desejar com todas as tuas forças que ainda esteja lá alguém para te receber. Mesmo que tenham passado dias desde que partiste. Meses. Anos, muitos anos. É fácil. Mas se fosse fácil... Tu não tinhas tanto medo, não é verdade?

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Eu dei-te a chave quando a porta não estava aberta, apenas há um minuto. Arranjei mil e uma maneiras de te encontrar, agarrei-me aos pedaços de tempo que me concedias e fingi que era normal, hipoteticamente. Deixaste a cama vazia e os lençóis, impregnados no teu cheiro característico, ainda roçam nas minhas pernas e solto um sorriso ou outro, como se de cócegas se tratasse. Isto sou eu a fingir. É mais fácil pensar assim, às vezes. Eu vi-te vestir a tua melhor camisa, engraxaste os sapatos que tinhas debaixo da cama a apanhar pó - pareciam sapatos de defunto, dizias tu entre gargalhadas quando te mandava aperaltar um pouco mais. Eu não precisava que fosses mais do que és, encantaste-me com as camisolas amarrotadas e as calças rasgadas nos joelhos, com as sapatilhas gastas pelo tempo e o cabelo desgrenhado de quem acabou de acordar. Mas hoje resolveste calçar aqueles sapatos. Sinceramente eu não me soube despedir porque sabia o que por aí viria. Fingi novamente. Fiz-te o café forte, e como sempre, fiquei calada. Eu dei-te a chave quando a porta não estava aberta, apenas há um minuto. Tu não a quiseste. Deixaste a chave ao meu lado, na cama, porque sabias que não precisarias dela para voltar. Já estavas num outro caminho, cujo nome desconheço. Sempre soubeste alargar os horizontes de quem tos fecha mas esqueceste-te de que os teus são os de outrem também. Era tão mais fácil se soubesses caminhar com os meus sapatos e percorresses toda a minha mente enquanto eu descanso, para que me conhecesses. Me soubesses. Me vivesses. Mas tu não. Tu crês que quando achamos que não há volta a dar, o melhor é virar em direcção contrária e voltar para onde viemos. Percorrer tudo de novo. Retroceder no futuro. Caminhar a passos longos e decididos, como se não precisasses de bagagem porque já sabes para onde voltas.
Eu dei-te a chave quando a porta não estava aberta, apenas há um minuto. Esse minuto já passou demasiadas vezes e eu ando a enlouquecer com o relógio que não pára de tiquetaquear na minha cabeça incessantemente. Tu ainda não voltaste. A chave ficou esquecida ao meu lado. Por enquanto ficarei aqui para te abrir a porta, se decidires regressar.
Quando eu decidir partir o relógio, jogar a chave fora, lavar os lençóis da cama, quebrar a tua chávena de café preferida, rasgar por completo as tuas calças, tu só vais ter esses sapatos engraxados com os quais foste embora.
E aí talvez entendas que isso não te vai levar a lugar nenhum.