Leitor

Tapete vermelho.





Chegas a insultar o meu discernimento fugaz; ludibrias o teu ser com a minha capacidade pragmática e racional de ver as coisas, afinal, para quê serem dois a pensar sobre o mesmo assunto? Sou capaz de esmíuçar o mais ínfimo pormenor e tu sabe-lo.

Que fujo quando os problemas me assombram porque melhor que viver longe deles, é viver sem saber que correm desenfreados atrás de mim, e tu só os ajudas a apanharem-me desprevenida, dizes que não. Tu só dizes que não, que o teu íman não os afecta de maneira alguma, ingenuamente falando, és criança inocente que imagina ter o doce na mão enquanto ele derrete no asfalto quente.
Serás tu cego, que não vês a desgraça em que te afogas? Que te consome as ideias e o juízo, me suga as energias e nos entrega ao monstro voraz que é o cansaço. Arrancas carne e alma por algo que sabes que, em válido segredo, não existe por mutualidade. E o que não existe, ainda, não se muda, não se transforma. Vive em inexistência por um período supérfluo e paralelamente utópico enquanto nos enganamos porque sim, porque é melhor e não dói tanto.
Reflito em silêncio sobre toda a sanidade mental que me falta e concluo que sou uma louca desvairada, daquelas que arranca cabelos e rasga as roupas. Sou capaz até de me colocar em frente a um comboio com a (in)feliz ideia no pensamento de que não morro, porque nem essa morte me falta. Mas se reflito sobre a tua doença vejo que és incapaz de ser como seu, que vives num mundo sem reacção, apático. Nem te atreves sequer a pensar em rasgar as roupas, porque são muito caras, ou então porque a nudez te deixa tímido, tão púdico que és.
Posso ser bastante demente no que toca a decisões e escolhas que acabo por tomar, mas se escolho é porque coragem não me falta, radicalismo muito menos. Segurávamos ambos algo que já estava caído no chão, junto com o teu doce, no asfalto quente, e mantinhas um sorriso amarelo e seco nos lábios enquanto eu gritava aos sete ventos. Que o deixaste cair. Que não te mexias. Que estavas a morar no mundo que pintaste sozinho e nos teus segredos mais profundos.

Esticaste a corda e ela partiu.
Quem serei eu para lhe dar o nó que lhe falta, se o que mais nos falta agora são os laços?

Told you so


Quem me conhecesse saberia exactamente que a minha imagem não passaria de meros e escassos traços alegres repentinos, e que o esboço do teu olhar ainda me percorria os traços vincados das minhas raízes negras. Os lábios carnudos que tu tanto gabavas sentiam ainda o aconchego dos teus, num beijo leve e casto, aquele que me deixaste antes de mudares de sítio. Eu de ti queria um colo, um berço, um braço quente em torno do meu pescoço, uma voz que cantasse baixo e parecesse querer fazer-me chorar. Eu queria só um pequeno calor no inverno, um extravio morno da minha consciência e depois sem som, um sonho calmo, um espaço enorme, como a lua rodando entre as estrelas. Não achei que pedisse muito, seria erróneo da minha parte até dizer que simplesmente pedi. Agora esfrego as mãos porque está frio e espreito por cima do ombro para ver quem me segue. Não está ninguém. Quem me conhecesse saberia que não iria percorrer as ruas sozinhas simplesmente porque acabaria por perder as forças a meio caminho e que iria fraquejar assim que me sentisse desamparada. Quem me conhecesse não diria que me conhece agora. Tu mudaste de sítio e por isso já não me conheces e pregas aos sete ventos o facto de não saberes quem sou. Já soubeste quem fui, porque mentes afinal se quem decidiu mudar de sítio foste tu? Que trocaste os papéis e inverteste as decisões? Que escolheste fugir do futuro com medo do passado assombroso que me envolvia? Se eu te tivesse avisado... Tinhas ido embora na mesma. 
Acendo um cigarro que me morre nos lábios e o fumo incomoda alguém que se encontra a meu lado, forçando-a a seguir outro caminho. Que ironia do destino se o que me alivia a dor acaba por ser aquilo que me faz afundar mais ainda. Solto uma risada sem medo de críticas porque ninguém me vê. Olham. Não me vêem. 
A vida não passa disto, os momentos perfeitos servem para nos dar força para todos os outros e ensinam-nos que a eternidade às vezes só dura alguns momentos, algumas risadas e lutas de almofada, mas entre caixotes, pó, memórias perdidas no tempo e a certeza que nunca mais entrarei na casa onde vivemos, guardo-te com o sabor dos chocolates que já viveram na mesma caixa onde agora repousas, sereno e pacificado, na doçura triste que sucede a desordem do amor. Ali porque já fugiste de todas as maneiras e dizes que não me conheces porque já não estou igual. Sabes uma coisa? 
Por vezes, acomodamo-nos naquele lugar seguro. Conhecemos cada canto da casa e sabemos que janelas abrir ou manter fechadas. Conseguimos caminhar às escuras sem tropeçar num tapete ou bater nalguma parede. Estamos confortáveis, nada nos perturba. Ali sabemos quem somos e o que nos espera. Sabemos que temos uma porta que nos separa do que queremos deixar lá fora.
Sair desse lugar seguro deixa-nos frágeis. Faz-nos ter de pensar nos perigos que corremos. Deixamos de ter portas que nos protegem. Deixamos de poder caminhar à escuras porque não conhecemos o chão que pisamos. Nem sequer existe o vidro da janela por onde podemos espreitar sem termos de nos expor ao frio e à chuva. Sabemos que a nossa resistência será posta à prova. E não sabemos se, um dia, esse lugar assustador poderá ser um lugar tão confortável e seguro quanto aquele onde nos fechámos. E então ficamos ali, no hall de entrada, de chaves na mão, a tentar perceber se é melhor continuarmos no conforto do nosso canto ou se devemos reaprender a caminhar à chuva. 

Não me refugiei e o cigarro apagou-se com a água que caiu repentinamente do céu cinzento que me cobre os pensamentos e abro finalmente o guarda-chuva. Sei com todas as certezas de que irei ficar doente sem ninguém para me preparar as torradas e infelizmente não suporto o chá que sei que tenho de beber. Mas lembro-me do quão infeliz será a tua vida no sítio para onde decidiste fugir e esboço um sorriso enviesado, sei o que pensas. 
E mais do que tu, também eu temo aquilo em que me transformei. E nunca me surpreendi tanto com a minha monstruosa frieza e alheia ao que me dizem. 
Se eu quisesse entrar em generalizações e dizer que as pessoas não mudam, nem com o tempo, nem com a idade ou nem com as experiências que vão vivendo, se eu dissesse que apenas se moldam e adaptam às circunstâncias, mantendo sempre a sua essência, personalidade e princípios, teria de ignorar a mão cheia de coisas que, há meia dúzia de anos, seria capaz de fazer com a maior das convicções e que, hoje em dia, me parecem completamente inconcebíveis, ou vice-versa. Teria também de ignorar todas as coisas a que dava um enorme valor e que hoje não me parecem fazer qualquer sentido. E todas as opiniões, gostos, vontades, acções e reacções que faziam parte da minha forma de ser ou estar, forma essa que hoje nem sempre reconheço. Ou então, teria de ter a pretensão de achar que sou diferente de todos os outros. E não tenho. Não sou. Por isso digo que as pessoas mudam, sim. Algumas mudam até de uma forma brutal. 

Só não acontece é com todas.