Leitor

Presságio


 
Sentei-me junto à janela. Sinto a brisa leve e arejada e sou repentinamente invadida por desejos mirabolantes e uma insónia desgraçada. Tenho que dormir. Preciso mesmo de dormir. Só não sei como, realmente. Se me deito, penso em ti. Se vagueio, em ti penso. Sai de mim. Sai por favor. Não saias. 
Acabo por me sentar na cama e acendo um cigarro, não consigo deixar de pensar no que aconteceu. No que vai acontecer. Tenho a minha barriga a viver com as borboletas.


Abro os olhos porque ouvi um choro repentino. Agudo. Forte e insistente. Vem de longe mas não muito, o suficiente para eu não me preocupar em verificar porque senti passos próximos. Fecho os olhos. Acabo por inalar um cheiro característico a canela e maçã, com um pequeno travo a menta. Sinto um beijo percorrer-me o pescoço, que acaba por me morrer nos lábios. Tens o hálito fresco e eu morro de vergonha por teres que olhar para mim. Que acordo tão horrivelmente mal. Alargas um sorriso enquanto me embrulhas no teu abraço matinal e dizes: bom dia amor. Amor, eu? Onde andei este tempo todo? Descobri agora que te vivo. 
E uns pés de lã invadem o quarto.
Um ser totalmente estranho invade a cama e rouba-me o cobertor. E tu, embevecido, deixas. Como é possível eu observar-te tão apaixonado!? Ternurento até, admirado, orgulhoso. Sinto um puxão nos cabelos desgrenhados e um "bom dia mamã" presenteia-me a vida. Tem os teus olhos, que escondem segredos e artimanhas. Olhar maroto de quem acabou de fazer asneiras mas santo o suficiente para saber que não foi com maldade. Um nariz perfeitinho esculpido numa cara redonda e emoldurada nuns caracóis castanhos. Brilhantes. Uns lábios cheios e tão rosados quanto as maçãs do rosto. Dois dentinhos enfeitam-lhe a boca e eu não consigo evitar agarrá-lo. 
Mergulho no abraço do meu pequeno amor, enquanto sou protegida pelo teu. No silêncio. Porque não preciso de mais nada. Porque me encontro tão afogada em amor que não exijo salvação. Porque a vida é perfeita e se melhorar estraga. Porque me envolves com o teu toque doce e atrevido. Porque me proteges como um super-herói mas eu sei que és feito de carne e osso. Conheço a tua fraqueza e sei que se te faltar, andas com as camisas amarrotadas e acabas por te alimentar mal. Descubro que te esqueces de mudar as fraldas ao menino e que por vezes te atrasas na hora do jantar. Que andas sempre a perguntar que dia é, porque te perdes no calendário e em mim. E só por isso fecho os olhos. Nos braços dos amores da minha vida.

Só não sei porque acordei. Ligo-te e vou ter contigo. Os sonhos só se concretizam se fizermos por isso. 
Ama-me para sempre


•••

Só no fim destes dias.

No fim destes dias encontrar-te a ti, que me sorris, que me abres os teus braços e me enrolas no teu amor, que me abençoas e passas a mão na minha cara marcada, na minha cabeça confusa, que me olhas nos olhos e me permites mergulhar no fundo quente da curva do teu ombro. Mergulho no cheiro que não defino, no toque que não sei descrever. Tu que me embalas dentro dos teus braços e tu que me beijas e tu que me apertas e tu que me sossegas repetindo que está tudo bem, tudo, tudo bem.
Que te lembras de mim quando eu finjo que não estou cá, que me acalmas quando me enfureço por coisa nenhuma e que te sentes completo quando estou no teu redor.
No fim destes dias, sabendo que te encontrarei no dia seguinte, que estarás aí para mim sempre que precisar. Espera-me, tu que esperas por tantos momentos e me agarras nos teus prantos e que sossegas o teu choro em mim. Como poderia eu ser inteira, se não te consigo apenas amar pela metade? 

«mg.»

Lacunas





Ah, fumarás demais, beberás em excesso, aborrecerás todos os amigos com tuas histórias desesperadas, noites e noites a fio permanecerás insano, a fantasia desenfreada e o sexo em brasa, dormirás dias inteiros, noites acordada, faltarás ao trabalho, escreverás cartas que não serão nunca enviadas, consultarás búzios, números, cartas e astros, pensarás em fugas e suicídios em cada minuto de cada novo dia, chorarás desamparada atravessando madrugadas na tua cama vazia, não conseguirás sorrir nem caminhar pelas ruas sem descobrires em algum jeito alheio o jeito exato dele, em algum cheiro estranho o cheiro preciso dele. Disfarçarás melancolia ao ouvires o seu nome, suspirarás cada vez que lembrares o seu beijo e chorarás quando finalmente descobrires que ele já não te quer mais.


(...)

Dear God...






Sempre tive a mania de que sabia tudo. De cor, salteado, para a frente e quiçá, para trás. Relancei milhares de vezes o meu corpo para o que julgava ser etéreo, julguei-me sóbria. É, sempre soube tudo, mas esqueci-me de que podias existir. O sol brilha lá fora, cheio de frio, e sinto-me tão quente...Esqueci-me. De que passarias por mim, em algum lado, num dia qualquer, como quem não quer nada, mas queres.
Esqueci-me de que és homem. E quando realmente gostas, vais até ao inferno por mim. Vais e enfrentas mil tormentas, porque gostas. Porque és simples e previsível. Porque tu não és como eu, raça errónea da Humanidade, que analiso, penso e ainda atribuo mil problemas quando eles não existem. Balanço o meu ser entre o ir e o ficar, com medo do destino que me espera, talvez mais do que do caminho. Volto para trás quando está escuro, quando és instável, quando me assustas. E só desisto quando me deixas.
Sempre tive a mania que sabia tudo. Que era independente e só eu escolheria o que quero. Que rumo tomar, que experiências viver. Trocaste-me o saber e as voltas, viraste o mundo do avesso e agora encontro-me de pernas para o ar, com o sangue a subir-me à cabeça, entre gritos e agonias.
Mas sei que sempre chegas, quente e saboroso, apetecível e ternurento. Pronto para me pôr no lugar, para me voltares a jogar ao ar novamente. Apetece-me voltar para trás, só porque me assustas. Porque me cativas. Porque eu já gosto de ti.
Porque me apareces afinal?



Água do bongo


Cara de sono. De facto, com um sorriso de quem acabou de entornar a água do bongo na placa de som. Um dia, torno irremediável a escolha da data em que vou. Entretanto, arrasto o meu corpo, até ao doutor, porque o meu frasco acabou. Frios suores, poros disparam vapor. Horas depois, para aliviar o ardor no peito, eu escrevo. Mas mãos tremem sem parar, ao compor imagens extraídas da parte de trás do meu topo. À frente, uma cara de poucos amigos que não percebem que não estou para conversas sem termos de conversar antes sobre isso. Uma cara de poucos amigos, independentemente do número. Funcionam todos à base de avisos, eu não me resumo num. Eu sumo-me. Façam rolar esse tapete de alcatrão na minha frente, como se fosse a passar o carro da Google. Eu nunca espreitei o mapa. Fedelhos pedem conselhos, numa de partilha e comunhão com as massas. Desamparem-me a loja. Esta é para a corja que prega os meus momentos medíocres, como se tudo em que toco se tornasse magnífico – É esse o espírito. Hei-de morrer pobre pela minha obra. Assim por alto, até agora, devo ter ganho, sei lá, um cêntimo por hora. Eu preferia acabar num lar. Não, eu preferia doar um rim. Não, a sério, eu preferia afogar o meu primogénito num alguidar do que vê-lo a crescer até se tornar um básico – Pela morte, serás exemplo. Eles que façam de ti um mártir.

No que toca à quantidade de dígitos, estou convencido que o meu saldo negativo ultrapassa o teu positivo. Além disso, acredito que, só com vinho, já me embebedei mais sozinho que tu com os teus amigos. Quando escrevo, escorre quente o veneno que me corre dentro. Este é o meu adeus precoce. A minha laia morre cedo. Nervoso? Só sempre. Corto rente laços. Falo “Fêmea, um dia volto, mas hoje ainda não pode ser”. Pé na tábua. Eu não preciso de nada. Escrevo estas letras com a mesma caneta com que desenho a capa. Trancado no quarto, quando calço luvas de borracha, recorto letras de revistas e envio anónimas cartas de ódio às ex-namoradas. Elas sabem o que aqui se gasta. Não tenho jeito com nomes, sou péssimo com datas, porque adoro fumar bêbado. Há cinco anos em casa mas moral altíssima, numa de “eu nunca voltei da estrada”. A vida não presta. Só ira resta. Temo não alcançar os quarenta. Não há tempo para dormir a sesta. Desculpem-me se não ando de corno preso à testa com um com elástico, a peidar borboletas. Eu vejo além das tretas.