Leitor

even the darkness has arms



“you are here.
.
and that’s all that matters.”




Eu quero guardar todos os bocadinhos que me foram deixados. Saber que estão ali, para eu percorrê-los com o olhar, para lhes tocar uma e outra vez, para saber que foram reais, que não mos foram tirados. Que não foram embora.

Pego na minha cadeira de verga que me foi deixada por alguém de quem já não me lembro e escolho o lugar cujo luar ilumina com intensidade, mesmo junto à janela. Encontrei o gato a fechar os olhos às estrelas e, com a chávena de café numa mão e cigarro na outra, decido enxotá-lo do parapeito com um "shhh" intenso, tão intenso que quase acordei quem dormia na minha cama.
Abro apenas um bocado a janela, com medo que o vento me empurre o fumo para dentro de casa e que descubram que me levantei mais uma vez. Não consigo dormir. Não tenho conseguido dormir todos estes anos, as rugas pesam-me na cara mas as olheiras já fazem parte da minha pele. Vivem de mim e alimentam-se de todas estas noites em que fiz exactamente o mesmo: olhar para a rua. O café queima-me a boca e o cigarro vai-se queimando entre os meus dedos enquanto sussurro uma prece, regra da noite, rotina diária. E em cada palavra processada entre lábios, fecho os olhos para não me esquecer. Eu só rezo para não me esquecer. E faço sempre o exercício mental de percorrer as tuas feições vincadas e os teus lábios carnudos na ânsia de ainda me recordar dos teus vinte anos, há tantos e tantos outros atrás. Às vezes dou por mim a chorar nos cantos da casa, quando descubro que estou sozinha, porque não sei onde deixei os óculos ou porque me esqueço do que ia fazer. Mentira. Eu não choro por isso. Eu choro porque sei que é assim que se começa. Porque sei que, aos poucos, vais desaparecer de onde viveste desde sempre. E a única coisa que posso fazer é tentar lembrar-me constantemente para saber quando te vou deixar.
Eu já devia estar a dormir um sono pesado mas espero, ansiosamente, sentada na minha cadeira de verga em frente à janela e com o gato no meu regaço. De repente, sais tu. Todo aperaltado, de braço dado com uma dama que vejo todos os dias mas não conheço. Todos os domingos a mesma rotina. Tu de sapato engraxado, camisola de malha feita à mão (por ela, provavelmente) e uma careca brilhante à luz da lua. Vejo-te sorrir, já com poucos dentes, e encostas-te mais a ela para que o frio não vos enregele os dedos. Todos os domingos vejo a mesma cena. E todos os domingos pergunto a Deus porque não sou eu a dar-te a mão. A costurar-te as calças rotas. A fazer-te camisolas de malha e cachecóis de lã para te aquecer nestas noites frias. Os anos passam em ti todas as semanas, e cada dia que te vejo estás um ano mais velho, um ano mais pesado, mais cansado, mais arrastado. Vou-te vendo viver. Todos os domingos à noite, durante 6/7 minutos, vejo-te atravessar a rua em passo lento, apoiado nela, com uma barba por desfazer e um olhar vago de quem pouco vê. Carregam nos vossos ombros toda uma vida cheia de crianças e adultos, com gerações a criar gerações. Com gatos e cães e plantas no varal da janela. E pronto. Já não te vejo. Já não sei onde vais. Já não sei onde vou. E tento esquecer o que vi, mais uma vez. Percorro-te com os teus vinte anos, quando me vinhas deixar rosas à porta todos os dias e fugias do meu pai porque ele exigiu que se me quisesses namorar, teria que ser pela janela. Vejo-te a jogar à bola no pátio com os teus amigos e vejo-te também de caderno na mão, a desenhar as flores que vias no meu jardim. Ainda te consigo ouvir gritar o meu nome só para eu espreitar os beijos que me mandavas pelo ar.
Eu tenho medo de me esquecer, porque sei que já não te lembras. Tenho medo que estes anos me continuem a consumir a memória pela qual tanto luto.
Levanto-me da cadeira e arrasto-me para a cama em passo lento e consumido, com o gato a roçar-se nos meus pés enrugados e frios. As mantas não me aconchegam e tento a todo o custo conseguir fechar os olhos. Já nem consigo chorar mais. Eu sei que daqui a uma ou duas horas farás todo o caminho de volta para casa, vais demorar eternidades a abrir a porta porque as mãos já te tremem e a fechadura parece querer brincar contigo. Conheço todas as tuas rotinas e trejeitos, sei que te tratam bem e que vives cheio de amor. Sei que nunca te faltou nada porque encontraste tudo. Deixaste-me no dia em que foste embora para sempre mas eu nunca te deixei.
Namoro contigo todos os domingos pela janela e tu não sabes.

open;eyes

A distância só mata o amor que já está doente na hora da partida.

 Ainda aqui estavas e já eu tinha saudades tuas. Continuo a ridicularizar todas as palavras evocadas em silêncio, pensei que nunca as quisesses ouvir. Somos feitos de carne e osso e arrependimentos, e, à parte da matéria que me constitui, vou-me afogando em desejos infindáveis de ter feito o que devia no momento oportuno. Digo eu, na tentativa de me iludir mais um bocadinho, que oportunidades não me faltaram, mas eu sabia ou julgava saber que a hora certa iria chegar e eu iria reconhecê-la como um cego que reconhece o toque de quem ama, de quem espera, de quem anseia. Estupidez é saber que algo é esperado. Eu não esperava descobrir que, quando a minha derradeira oportunidade chegasse, tu terias outra chance de fazer algo diferente. E ainda continuo sem saber como foi que me perdi no tempo. Quem diz que nunca é tarde demais não sabe o que é ver a areia fugir por entre os dedos. Tentar parar o tempo. Soprar o vento para que ele vá na direcção contrária. Apagar o sol só com um fechar de olhos. Fazer com que ficasses, só por agora. Ainda aqui estavas e eu já tinha saudades tuas. Acabava por sentir um consolo ínfimo por saber que, apesar de nunca o termos dito, estaríamos sempre perto um do outro, e na minha equação, eu não saberia o que dizer quando me fosses subtraído. Só Deus sabe (e porque não tu? que eu nunca fui de religiões e Ele nunca me atendeu na hora certa) o poder que tiveste de me calar quando tiraste o mundo dos meus pés. Um único ser nos falta, e fica tudo deserto. Porque eu sei que pisei o risco. Que estava ali à beirinha, a brincar com as pedras e a olhar para o precipício. Eu estiquei a corda e ela partiu. E com ela partiste tu, mesmo quando eu achava que seria hora de dar uma volta de 180º e voltar a pisar terra firme. Cometemos sequencialmente o erro de perder oportunidades por orgulho, mania ou desculpas e quando finalmente achamos que já chega, que está na altura de pausar a vida e arranjar um novo rumo, vemos que fomos só nós que pausámos. Que os outros continuaram os seus rumos. Cada um arranjou uma solução diferente para o problema que teimámos em guardar com amor e carinho só porque sim: porque é mais fácil manter o problema por perto e continuarmos a vigiá-lo com medo que ele volte a fazer uma das suas do que resolver virar-lhe as costas e engolir as consequências. E quando achamos que poderíamos finalmente resolver as coisas é quando nos é imposta uma nova situação; um novo teste. E pouco mais nos resta senão aceitar que cada um sabe ou finge saber o que quer, que não podemos ser egoístas e esperar que as pessoas nos esperem eternamente. Somos obrigados a aceitar. E custa tanto aceitar... Ainda aqui estavas e eu já tinha saudades tuas. Alguém muito sábio uma vez me disse: arrepende-te apenas daquilo que tu não fazes. Mas eu arrependo-me daquilo que fiz e choro por aquilo que não consegui fazer. É tarde demais. É não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos, não saber como encontrar tarefas que me cessem o pensamento, não saber como calar as lágrimas diante de uma música, não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Porque as saudades não se cingem apenas à falta física ou à lacuna deixada em memória por alguém.Termos saudades do que não existiu principalmente por nossa culpa dói bastante.O amor calcula as horas por meses, e os dias por anos; e cada pequena ausência é uma eternidade. Para quem ama, não será a ausência a mais certa, a mais eficaz, a mais intensa, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças? No fundo, o truque é fazer com que a nossa ausência seja notada o bastante para que alguém sinta a nossa falta, mas não a podemos prolongar demais para que esse alguém não aprenda a viver sem nós. 

Só resta aceitar e aprender. A não deixar fugir. A não deixar escapar. A viver as coisas quando achamos que têm que ser vividas e a não esperar pelo momento certo. Porque acabamos por descobrir que o momento certo já passou e nós nem reparámos. Quem tem um amigo, mesmo que um só, não importa onde se encontre, jamais sofrerá de solidão; poderá morrer de saudades, mas não estará só.
 De tudo o que poderias ter sido para mim, ambos escolhemos que deverias ser a falta. O vácuo. O arrependimento. A saudade. Eu precisava ser, e só consegui ter. Se me esqueceres, por favor, esquece-me bem devagarinho.

É que ainda agora aqui estavas. E eu só sei ter saudades tuas.