Leitor

a valsa do pavão ciumento;


Uns cosem para fora, eu coso para dentro.




É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. Troco os raciocínios, salto procedimentos, tropeço no que quero pensar e falo o que nunca cheguei a querer. E é engraçado como uma das coisas mais importantes que aprendi até hoje é que se deve viver "apesar de". Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio "apesar de" que nos empurra para frente. Que nos força a fechar os olhos e dizer "seja o que Deus quiser". Mesmo que não queiramos. Foi o apesar de que me deu uma angústia insatisfeita criadora da minha própria vida. Foi o "apesar de" que parei na rua e olhei para ti enquanto não sabia se estava a ver bem: quiçá pensei estar ludibriada pela ansiedade. Ou pela vontade. Ou levemente alterada pela excitação de que, apesar de, poderias ser tu. E se fosses tu talvez eu não voltasse a perder tempo. E desde então que todos os dias corro da mesma maneira ao encontro do teu abraço, do teu corpo. Mas quero-te inteiro, com a alma também. Por isso, não faz mal se não vieres, eu espero o que for preciso.
Mas ontem fechei os olhos e descobri que a saudade é um pouco como a fome. Só passa quando se come a presença. O problema é que às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida. É o sentir-se a falta da pessoa mesmo quando ainda a temos à nossa frente. É agarrar para não deixar ir embora, porque no primeiro segundo em que nos sentimos sozinhos, desejamos voltar para um abraço. Um olhar. Um beijo. Um toque. É quando descobrimos que a saudade não mata mas mói. E demasiado. Porque eu descobri que fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensava que amar era fácil. E no fundo eu ainda não compreendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como uma pessoa que não seja capaz de o fazer. Muito pelo contrário. É não se entender por opção. Por ser melhor. Porque gostamos mais assim. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura e não ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando a vontade de entender um pouco começa a inquietar-nos.
É então que estragamos tudo. Equacionamos respostas que nem deveriam ser ponderadas, encenamos desfechos incrédulos, julgamos entender aquilo que um dia nos passou ao lado. E dizemos sempre que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, não me refiro ao fogo, refiro-me ao que se sente. O que se sente nunca dura, o que se sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-se o fogo, e o fogo doce arde, flameja, queima. Torna-se cinzas sem razão. Antecipamos a morte do calor porque não queremos que o fogo se apague. E é então que ele se apaga.
No meio disto tudo, tudo foi erro. Havia muito nevoeiro nas ruas e quanto mais olhava para saber se estava a ver bem, mais me convencia de que estava tudo errado. Que estar ali, àquela hora, era um erro. Que não era suposto sequer eu julgar ter-te visto. E quanto mais olhava, mais aspereza eu criava. Tudo só porque eu tinha prestado demasiada atenção. Porque quis dar um nome àquilo que via, ao que sentia. Só porque, de súbito, fui demasiado exigente, porque quis o que já tinha. Porque julguei ver aquilo que queria ver.
Aprendi que, não se estando distraído, o telefone não toca. E é preciso saírmos de casa para que a carta chegue, para que o telefone toque. Para que aquilo que é suposto ser esperado, nos chegue inesperadamente. É preciso estarmos distraídos para prestar atenção e vermos o que realmente interessa.



 

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