Leitor

(cool kids)


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Mas quando é para ir embora, é obrigação levar as mãos nos bolsos e a cabeça erguida. Não se olha para trás, porque olhar para trás é uma maneira de se ficar num pedaço qualquer para se partir incompleto, e acabamos por ser só metade. Só metade vai embora. Não se olha e não se fica.
É incompreensível como o querer o outro possa tornar-se mais forte do que o querer a si próprio. Nem tampouco compreendo como é que o querer o outro possa parecer a saída de uma solidão fatal. Mentira. Compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinha do útero da minha progenitora e de que irei embora de vez num caixão rumo ao pó. O que nós precisamos é daquilo que acontece entretanto. Do que fica no meio. Do que vivemos sem pensar que queremos. E exigimos o eterno do perecível, que idiotas.
Mas tudo isso me perturba. Eu, que pensara sempre que, de certa forma, toda a minha evolução conduzira lentamente a uma espécie de não-precisar-de-ninguém. Sempre aceitei todas as ausências e teimava em comparar-me a um álbum de retratos. Carreguei nas costas centenas de fotografias amarelecidas pelo tempo, em páginas que folheava detidamente durante as noites em que o sono teimava em me deixar só também.
 Acho que sou bastante forte para sair de todas as situações em que entrei, embora tenha sido suficientemente fraca para entrar. Menos pela cicatriz deixada, uma ferida antiga mede-se mais
pela memória da dor que provocou e perde-se para sempre no momento em que cessa de doer, embora lateje loucamente nos dias de chuva. Fiquei tão só, aos poucos. Fui afastando as pessoas que julguei não me acrescentarem nada, e não ficaram muitas outras. Às vezes, nos fins de semana principalmente, tiro o telefone do gancho e escuto, para ver se não foi cortado. Não foi. É nestas circunstâncias que chegas à conclusão de que o teu único apoio será a mão estendida que, passo a passo, raciocinas com penosa lucidez, através de cada palavra, estarás talvez a afastar para sempre.
Às vezes sinto uma vontade ridícula de voltar. Mas é uma vontade semelhante à de não ter crescido.
E fico tão cansada. E digo para mim mesma que está errado, que não é assim, que não é esta a altura de ceder e que não é esta a vida. E fumo, e fico horas sem pensar absolutamente em nada.
Não me tomem por errónea, é preciso julgarmo-nos com o máximo de rigidez, mas não sei se serei capaz. É que as coisas por natureza já são tão duras para mim, que julgo não ter o direito de endurecê-las ainda mais. Caímos todos na mesma ratoeira. A única diferença é que uns julgam que podem escapar, enquanto outros (inclusive eu) querem chafurdar na dor do ferro enfiado na garganta seca que só humedece com café e álcool. E fumo durante horas seguidas, para ver se as horas me acabam mais depressa. Eu não estou desesperada. Não mais do que sempre estive.
Não temos tempo: somos maduros. Onde será que isso começa?
É tão estranho carregar uma vida inteira no corpo, e ninguém suspeitar dos traumas, das quedas, dos medos, dos choros. O truque é não enlouquecer. Nem matar. Nem desistir. Pelo contrário. Se ficarmos óptimo incomodaremos mais ainda. Porque as pessoas falam coisas. E por detrás do que falam há o que sentem. E por detrás do que sentem há o que são. E o que são nem sempre se mostra. É por isso que tenho tentado aprender a ser humilde. A engolir o que a vida me enfia goela abaixo. A lamber o chão por onde passam. A fumar os meus cigarros no meu canto, a guardar as beatas nos bolsos para não sujar nada. A sentir-me desprezada que nem um cão, e tudo bem. É acordar, lavar os dentes, tomar café, acender só mais um e continuar como se não se passasse nada. De tanto fingirmos acaba por se tornar verdade. Mesmo que só para nós.











 

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