Leitor

Prevaricação mental ;





Olhas para as roupas espalhadas pelo chão, têm ar de estar tão usadas quanto o prato em que comes todos os dias. Não sabes se deves arrumar a casa, visitas nem vê-las e sinceramente, sabes que não terás nenhumas enquanto te mantiveres enclausurada nessa bolha em que teimas conjugar o verbo viver. Viver não é assim, deixa-me que te diga, rapariga. 
Entre um cigarro e outro, acabas por alegrar um pouco as quatro paredes que te rodeiam com um jazz comercial demais, tentando trautear a canção em forma de abstinência pensativa só porque sim, porque fazer o vulgar às vezes é bom e sabe bem. 
Vejo-te cerrar os olhos enquanto te debruças à janela para ver as pessoas passar, tão cheias de si, com ar intocável e impenetrante, como se cada uma delas se achasse a única pessoa do mundo, acima de todas as outras. Acabas por soltar uma gargalhada - ah como é bom sentir que finalmente encontraste um resquício de alegria embriagada, tão espontânea que te assustas e páras por momentos, sem saber se foste tu ou eu, que não me vês mas imaginas. Soubessem elas que afinal és tu maior que todo o mundo na tua pequena altivez, consequentemente mundo que te chamas a ti própria. Deixaste as roupas no chão, cheias de cheiros e toques, ainda não estás preparada para deitar fora tudo o que resta, pensas tu. Não agora, na solidão dos teus encantos e receios, em que te sentes aprisionadamente confortável e sei que, no fundo, gritas em silêncio todos os dias, estando surda de te ouvir queixar. Reclamar. Seja lá o que for. 
O pior já passou, ambos sabemos disso. A melancolia do adeus, a desgraça que ceifou o brilho dos teus olhos cor de avelã que outrora tanto encantaram, o desespero que tomou conta dos teus dias, ansiando só por saber que afinal estava tudo bem, não passara de um sonho. E a cada vez que acordavas, pedias para acordar realmente, porque o cansaço de pedir a Deus não te deixava forças para mais. Tu, que de religiosa nada tens, viste-te forçada a pedir mesmo a quem sabes que nada tem para te oferecer, mas um pouco de motivação e embalo, mais que não seja fictício, é sempre necessário para nos mantermos sóbrios e inoculamente sãos. 
Sei que te ris sobretudo por isso. Porque no final só te resta rir, ir lavar a loiça que já se acumula há semanas porque sabes que vais acabar por não ter sítio onde colocar a comida plastificada que teimas em comer, mesmo sabendo que a cada dia te tornas mais desgraçadamente estragada. Coitadas dessas pessoas. Que se entreolham como se não se conhecessem e no fundo, todas elas sabem que não há merda nenhuma no mundo que não nos aconteça a todos. 
A dor de perder alguém que nos é imprescindível é tão comum que te surpreende que ninguém tenha inventado uma cura que se venda em frasquinhos, na mercearia ao virar da esquina. Era só rezar para que o sr. Julio te fizesse um preço de amigo, e pronto. Estava tudo resolvido. 
Mas não, temos que andar a martelar nas merdas dias a fio, choros inconsoláveis, gritos mudos, pancadaria mental. 
Que se lixe, pensas. Que se lixem todos os que pensam que não se consegue. Que não existe o dia de amanhã. Que apesar de tudo, morremos um pouco a cada pouco que passa. 
Tu sabes, descobriste que os dias afinal acontecem estejas morta ou viva, ou morta-viva, que os instantes que podem não contar nada para ti, que passaste em angústia, foram os melhores da vida de alguém. Que a cada minuto que sonhavas pôr termo ao teu destino, um destino novo era traçado a um novo ser que nascia. Sabes que morreu muito de ti, mas o resto que não sofreu a morte, tornou-se mais forte. Ou pelo menos, indiferente. Apático. Será assim tão grave? Pelo menos conseguiste. Correste mil mundos para chegar ao teu, a ti, que alienamente sofres de engenhos peculiares, as doenças que ainda não têm nome ainda te corroem mas que se foda, dizes tu. Pelo menos estás aqui e aprendeste. Que na vida, seja ela qual e de quem for, seja rico ou pobre; com um grande círculo de amizades ou apenas um gato para fazer companhia, a maior dor que existe é a saudade de ainda poder dizer "adeus, até amanhã". É saber que, chega sempre um dia em que o amanhã não existe. E quando esse amanhã não vem, sabemos sempre que o amanhã de alguém é melhor que o teu. Que se arrasta nos minutos, nas horas. Nos dias. Um atrás do outro, tic-tac. Não perdes tempo porque estás perdida nele, sem ambições nem anseios brutais. Quando deixamos de poder dizer "até amanhã" é quando o que nos espera deixa de estar lá. Acabamos por perceber que o que deveria estar certo, por habituação ou mesmo por gosto e vontade, nos deixa. Ou deixamos nós.
Que há amores que se vão embora, há uma mãe que nos abandona, há um gato que foge de casa. E que tal fugirmos nós também?
Fechas a janela, já chega de ver a hipocrisia desfilar pelas ruas como se fosse dona e senhora do teu bairro, da tua cidade, do teu país, do teu mundo sujo. 
Olhas duas vezes para a roupa que tinhas voltado a colocar no chão e sabes o que tens a fazer. Tiras um saco da gaveta empanada e esmurrada de tantos pontapés e resolves deitar fora os cheiros e os toques intensos sobre os quais elas estão impregnadas. No fundo, nunca é tarde, nunca é impossível até conseguirmos ter a capacidade de ultrapassar tudo. Não há maior força no mundo do que a vontade de viver. 

E amanhã pode ser tarde demais


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