Leitor

Holocene






Ajeitas o cabelo com ar manhoso de quem não se importa com os olhares fugazes de quem desdenha. Sei que sabes que estou aqui a decorar-te os traços, permaneço inquietamente quieto, para ver o que vais fazer a seguir. Não me prestas atenção, nunca prestaste. E quem seria eu se desistisse de te despir de pudores e preconceitos e fazer-te conhecer o mundo nú e cru que se nos apresenta. E tens tanto para conhecer...

Reparo na maneira como mordiscas os lábios quando pensas no vazio que te enrola os dias... És tão ingenuamente tentadora que seria mais pecado ainda não te desejar. Cruzas os braços como quem espera pelo dia amanhacer, sem dores incessantes, apenas apatia espelhada em todas as atitudes e movimentos. Pára com isso, deixa-te de merdas. Que eu desistir não sou capaz, mas perder a paciência é certeza mais que certa. Não me faças ir aí, pára de pedi-lo subtilmente, eu sei que não vais gostar. Porque sei que preferes a acalmia dos dias apáticos, a previsão antecipada de atitudes, a terapia do "já sei o que vou fazer hoje" ao invés do tormento do desconhecido, da imprevisibilidade momentânea de atitudes alheias, de quedas aéreas sem saber em que chão pisas. Eu não desisto. De te olhar, apenas. Porque conheço cada traço teu apenas com o fogo da minha imaginação, e, em pensamentos, tu já te mostraste em toda a tua plenitude.

Mas não me faças perder a paciência. Deixa-me olhar incessantemente, enquanto posso. Vestir-te com o meu toque, dormir nos teus lábios. Se eu me perder, que seja em melancolia. Não em perda. Porque se perco o que ainda não é meu, é a queda aérea sem chão que tu me dás. E eu ainda não sei voar...

Hoje vou dormir a pensar em ti. Vou perder a paciência contigo, vou aí. Vou agarrar-te. Fazer-te minha. E o resto... fica apenas para depois.

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